Fotos de JUANMA ZARZO.
Desde tenra idade o Oriente sempre me fascinou. Esse ponto cardeal que continuamente me remeteu para povos, paisagens (nunca por mim vistas para além de filmes e fotografias!), artes e filosofia. Talvez por ter nascido em Portugal, esse pequeno país de gente lançada aos oceanos na ânsia de chegar aos mais extremos cantos do mundo, o Japão ocupou um lugar de destaque e, ainda hoje, sonho com um dia poder visitar o país do sol nascente. Se o puder concretizar, fá-lo-ei para homenagear a minha infância (abundante em cinematografia de série B), como também para recordar a ingenuidade dos primeiros jesuítas que ali chegaram para disseminar um evangelho, hoje remanescente no coração de pouquíssimos nipónicos.
Apesar de reconhecer o fascínio que tenho por a terra dos samurais, admito que é cada vez menos romântico e mais realista, quando comparado com os meus verdes anos. Porém, tal não invalida o meu deslumbramento. Ler ajuda bastante. Neste caso sobre história japonesa, sobre Xintoísmo, sobre filosofia Zen (se é que a posso chamar filosofia...), a par de alguma literatura de autores nipónicos.
A maturidade acalmou o desejo de me projetar numa espécie de Nathan Algreen raiano, isto é, um ocidental anacrónico à procura de paz no Bushido. Para quem não sabe, trata-se da personagem dum capitão norte-americano - em conflito interior por haver testemunhado a crueldade das Guerras Indígenas Americanas -, criada por John Logan nessa, já antiga, película intitulada “O Último Samurai”.
Escrever uma crónica com algum léxico japonês exige várias (e imperfeitas!) tentativas de tradução e, caríssimo leitor, permita-me apenas ressalvar, caso desconheça, que o conceito de Bushido nos remete para o que se poderia definir como o “caminho do guerreiro”. Se omitirmos figuras históricas como Miyamoto Musashi, ou os famigerados Kamikazes durante a Segunda Guerra Mundial, se nos afastarmos de extremismos, como a cerimónia do Seppuku, o esventramento vulgarmente conhecido por Haraquíri (escrevo isto a lembrar-me de Yukio Mishima), esta forma de encarar a vida, tão conotada com uma atitude aguerrida, paradoxalmente cuida de prestar uma enorme atenção ao sublime da existência, encontrando exíguos consolos, paz, por entre tantas feridas e buracos presentes na armadura do ser.
O meu estimado leitor já se estará a indagar por que motivo me pus para aqui a escrever sobre cultura japonesa na “Rayanos Magazine”? E tem toda a razão. O que é que o Japão, o Oriente, tem a ver com esta nossa rai(y)a?
Respondo-lhe com um segredo, contudo sem qualquer tipo de sigilo. Nestes tempos nos quais a luz dos néons parece pôr à vista de todos o mistério do que antes se considerava profundo, difícil, praticamente sagrado, em Badajoz, numa esquina do coração da cidade, existe um local no qual somos convidados à reflexão, a viver, através da perspectiva das artes marciais tradicionais. Falo-vos do Kenshinkan Dojo.
Um Dojo não é um sinónimo perfeito de escola, pois trata-se de um termo usado para designar um espaço destinado ao ensino e à prática das artes marciais e da meditação, assente numa ténue fronteira entre o sagrado e o profano. Ali o respeito flui desde o trato pessoal até ao mais pequeno pormenor de manutenção e limpeza do local.
O Kenshinkan Dojo adapta-se, com notável esmero, ao paradigma e é o sonho de uma das vidas mais interessantes com as quais me pude cruzar. Afirmar que ali encontrei um dos meus grandes mestres e amigos é motivo de orgulho, uma honra. Digo-o em verdade e não só para manter o estilo oriental da crónica.
Se traduzirmos Kenshinkan ficamos com algo aproximado a “A Casa da Espada Celestial”. Aí habita Pedro Martín González (Menkyo Kyoshi Tenshin Shoden Katori Shinto Ryu), tal como o recato duma prática marcial ancestral, honesta, que não se confunde com o andar à batatada dos filmes de acção foleiros que ajudaram muitos neófitos a conceberem o Budo (“artes marciais”) como uma trivial manifestação de violência.
Pedro Martín Sensei, há quase quatro décadas a formar budokas, convida-nos a interpretar as artes marciais de uma forma holística. Por outras palavras, uma interpretação mais além das técnicas apanágio de defesas e ataques, explorando de forma equilibrada os movimentos culturais, as sensibilidades humanísticas e vários valores que considero essenciais e, infelizmente, não proliferam na sociedade.
Desde o primeiro dia que pisei o Kenshinkan Dojo, pela mão do meu amigo João Reis, senti-me a entrar num espaço de verdadeira devoção, amor sincero, por estas artes, talvez mal adjetivadas pelo deus romano da guerra. Senti que chegara ao meu Oriente, ao meu Japão, e não havia necessitado apanhar nenhum avião, ou caravela (como bom português!), para lá chegar.
Hikari significa “à procura de luz” e é também o título homónimo do último livro de Pedro Martín. Ler esse belo volume, com fotografias do jovem (e talentosíssimo) Juanma Zarzo, é conhecer o pilar que sustenta “A Casa da Espada Celestial”, é atrevermo-nos a contemplar como o ser humano se expressa de várias maneiras, todas legítimas, se houver respeito pelo outro, se houver simplicidade, se houver honestidade.
É bem possível que jamais pise o país do sol nascente. Deixei de procurar essa luz a Oriente. Encontrei-a aqui, onde habito. Não foi difícil. Como diz Pedro Sensei: “Sim, o simples é perdurável e, portanto, é verdadeiro”.